26.6.07

Cinema dos Primórdios - A Voz do Operário (1879)


  Corria o ano de 1879, e Portugal vivia tempos de agitação política e social. As classes trabalhadoras começavam a erguer a voz contra a monarquia, exigindo melhores condições e mais justiça. Foi neste contexto que nasceu a Sociedade de Instrução e Beneficência A Voz do Operário, um projecto pioneiro que viria a marcar profundamente a história do movimento operário em Lisboa.

   Curiosamente, tudo começou com um jornal. Um grupo de operários da indústria tabaqueira, que enfrentava uma crise severa, decidiu criar um meio de comunicação próprio, onde pudessem divulgar notícias, denunciar injustiças e debater os desafios do sector. A sede ficava no então Beco das Flores, hoje conhecido como Rua Norberto de Araújo, em Alfama, e o projecto exigia um esforço financeiro gigantesco para os seus fundadores. Mas os operários não desistiram. Com criatividade e espírito de solidariedade, procuraram formas de sustentar o jornal e garantir a continuidade da sua missão. A Voz do Operário não era apenas uma publicação, era um símbolo de resistência, educação e união entre trabalhadores.



  Foi com espírito de luta e solidariedade que nasceu a Sociedade Cooperativa A Voz do Operário, uma iniciativa que ia muito além da simples reivindicação laboral. Fundada com objectivos ambiciosos e profundamente humanistas, esta cooperativa procurava soluções para os desafios do trabalho, apostando na melhoria das condições económicas, morais e higiénicas dos operários. Mas não se ficou por aí: queria também garantir o acesso à educação e ao bem-estar, criando escolas, gabinetes de leitura e até uma caixa económica, tudo pensado para empoderar a classe trabalhadora e os seus associados. Em 1887, a cooperativa deixou o antigo Beco de Froes e instalou-se na Calçada de São Vicente, adoptando o nome que ainda hoje carrega com orgulho: A Voz do Operário. A mudança marcou o início de uma nova fase, mais estruturada e com maior impacto na comunidade.

  O grande marco arquitectónico chegou em 1912, com o lançamento da primeira pedra da sede actual, situada na Rua Voz do Operário. As obras prolongaram-se até 1932, dando origem a um edifício que se tornaria não só um centro de educação e cultura, mas também um espaço de exibição cinematográfica.

 O seu salão nobre começou a projectar filmes nessa mesma década, e mantém essa tradição até hoje, com uma programação dedicada ao cinema alternativo, uma janela para narrativas independentes, provocadoras e socialmente relevantes. Com uma lotação de 858 lugares, este espaço continua a ser um ponto de encontro para quem procura cultura com consciência.




  Durante os anos sombrios da ditadura do Estado Novo, a Voz do Operário enfrentou tempos difíceis. A censura apertava o cerco, mutilando notícias do seu jornal e limitando severamente as actividades culturais. Até a educação, um dos pilares da sociedade, foi alvo das imposições do regime. Ainda assim, com coragem e resiliência, a instituição esforçou-se por oferecer uma formação integral aos seus alunos, mantendo viva a chama do pensamento livre.

  Com o 25 de Abril de 1974, tudo mudou. A Revolução dos Cravos trouxe liberdade, e com ela, um novo fôlego para esta histórica sociedade. A Voz do Operário renasceu com força, adoptando o Movimento da Escola Moderna como método pedagógico, uma abordagem inovadora que se impôs no panorama educativo nacional e que continua a marcar gerações até hoje.

 A liberdade também devolveu à instituição a sua vocação cultural: regressaram os espectáculos musicais, o cinema, o teatro, as exposições de artes plásticas, a dança e as ações sociais. Foram inaugurados centros de convívio para idosos e creches para crianças, reforçando o seu papel como espaço de inclusão e cidadania.

 O edifício que acolhe esta história é uma obra-prima do arquitecto Norte Júnior, com uma imponente fachada neo-barroca que impressiona pela sua riqueza decorativa e efeito cénico. No topo, o frontão é sustentado por dois robustos pilares e ostenta um magnífico vitral em óculo circular, adornado com motivos simbólicos que marcam o corpo do salão nobre.

  O salão, situado no piso superior, começou por ser dedicado a actividades desportivas, mas foi transformado em sala de cinema, função que mantém até hoje, agora como espaço polivalente. O mobiliário e a decoração originais foram preservados, incluindo o deslumbrante vitral de Norte Júnior, que continua a ser um dos grandes tesouros do edifício. E, como curiosidade arquitectónica, nas traseiras ainda se encontram as estreitas escadas metálicas, discretas mas cheias de história.







A Voz do Operário tornou-se numa enorme referência educacional, social e cultural de Lisboa e como tal merece ser pesquisada e falada em qualquer livro ou projecto sobre esta cidade.



Fontes: 
Ribeiro, M. Félix, Os mais antigos cinemas de Lisboa, 1896-1939, Lisboa, Instituto Português de Cinema/Cinemateca Nacional, 1978
Fernandes, José Manuel, Cinemas de Portugal, Lisboa, Edições Inapa, 1995
http://cinemaaoscopos.blogspot.pt/2009/11/voz-do-operario-1932-actualidade.html
http://www.ecadequeiros.web.pt/Textos/Visita%20Voz%20do%20Oper%C3%A1rio.pdf
- http://billy-news.blogspot.pt/2010/04/tara-perdida-review-da-voz-do-operario.html
- http://www.apvo.org/a-voz-do-operario/
- http://www.cm-lisboa.pt/en/equipments/equipamento/info/edificio-de-a-voz-do-operario

1 comments:

Ah, a Voz do Operário! Muito tempo passei eu naquele salão quando era miúdo. Claro que o facto de ter sido aluno lá me deu alguns privilégios como o de ter pisado aquele palco mais do que uma vez e ter podido conhecer os bastidores. Parabéns pelo excelente blog e esperemos que continue este magnifico trabalho.