Hoje, a paragem é em Lisboa, mais precisamente no icónico Parque Mayer, situado junto à elegante Avenida da Liberdade. Este espaço, que pulsa com memórias de teatro, música e cinema, é um verdadeiro símbolo da vida cultural lisboeta do século XX.
Entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, Lisboa viveu uma expansão notável. A cidade modernizou-se, cresceu em população (impulsionada por migrações internas) e viu nascer novos bairros na periferia, que começaram a descentralizar a oferta cultural, antes concentrada em zonas nobres como o Chiado, o Rossio e a própria Avenida da Liberdade.
Foi neste contexto de transformação que surgiu o Cine-teatro Capitólio, uma obra ousada e inovadora que rompeu com os estilos clássicos da época, abraçando a estética modernista. A sua localização no Parque Mayer (inaugurado em 1922 como espaço dedicado às variedades) foi estratégica: já existiam ali dois teatros populares, o Maria Vitória e o Variedades, mas faltava uma sala de cinema que completasse a oferta de entretenimento para os lisboetas.
A resposta veio com a inauguração do Capitólio, promovida pela Sociedade Avenida Parque, Lda., formada por figuras influentes da época. Esta sociedade adquiriu o terreno aos herdeiros do milionário Adolfo Lima Mayer, e construiu o edifício no local onde antes existira a Esplanada Egípcia, um espaço de lazer que deu lugar a um novo polo cultural multifuncional, dedicado ao teatro, cinema e música.
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Planta do alçado principal do
Cineteatro Capitólio – 1925/1929
(Leite, J., 2011) |
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Planta do alçado lateral do
Cineteatro Capitólio – 1925/1929
(Leite, J., 2011) |
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Fases de construção do
Cineteatro Capitólio – 1925/1929
(Leite, J., 2011) |
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Fases de construção do
Cineteatro Capitólio – 1925/1929
(Leite, J., 2011) |
O arquitecto Luís Cristino da Silva, considerado um dos pioneiros do Modernismo na arquitectura portuguesa do Século XX, projectou este edificio entre 1925 e 1929, em estreita colaboração com o Engenheiro José Belard da Fonseca (responsável pela inovadora estrutura de vidro e betão na fachada principal).
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Arquitecto Luís Cristino da Silva (Cardoso, A. 2014) |
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Engenheiro José Belard da Fonseca (Google) |
Inaugurado em julho de 1931, este edificio não foi só mais uma sala de espectáculos em Lisboa, foi uma verdadeira revolução arquitectónica e tecnológica no coração do Parque Mayer. Num tempo em que a cidade se modernizava a passos largos, este edifício destacou-se pelas suas inovações arrojadas e pela estética vanguardista que o tornaram num ícone da capital.
Uma das grandes novidades era a escada rolante (algo raríssimo na época) que levava os visitantes até um terraço panorâmico com 11 metros de altura, ideal para acolher espectáculos ao ar livre e oferecer uma vista privilegiada sobre Lisboa. Este elemento não só reforçava o carácter moderno do edifício, como também o tornava num espaço multifuncional e dinâmico.
Mas as surpresas não ficavam por aí. O Capitólio foi equipado com um dos melhores sistemas de som do mundo, da prestigiada marca Bauer, elevando a experiência cinematográfica a um novo patamar. E a sua arquitectura não deixava ninguém indiferente: o enorme salão podia abrir-se para o exterior através de portas de vidro em faixas horizontais, criando uma ligação fluida entre o interior e o espaço público. A fachada original, marcada por linhas verticais e horizontais, era dominada por um painel de vidro iluminado que se erguia como um verdadeiro farol urbano, captando a atenção de quem passava pela Avenida da Liberdade. Era uma afirmação de modernidade, de cultura e de inovação... tudo num só edifício.
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Esplanada- terraço (Leite, J., 2011) |
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Entrada principal (Leite, J., 2011) |
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Sala de espectáculos (Leite, J., 2011) |
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Sala de espectáculos (Leite, J., 2011) |
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Sala de espectáculos (Leite, J., 2011) |
Este espaço, já inovador desde a sua inauguração em 1931, não parou de se reinventar ao longo das décadas. Em 1933, apenas dois anos após abrir portas, sofreu a sua primeira grande remodelação: as elegantes portas envidraçadas foram entaipadas e surgiu uma novidade que encantou os lisboetas... uma cabine cinematográfica instalada no terraço-esplanada, permitindo a realização de sessões de cinema ao ar livre, algo absolutamente pioneiro para a época.
Dois anos depois, em 1935, a sala de espectáculos foi novamente transformada. Um segundo pavimento foi introduzido, com balcão e camarotes, aumentando significativamente a capacidade do espaço para 1.400 lugares. Esta ampliação refletia não só o sucesso do Capitólio, mas também a crescente procura por cultura e entretenimento na Lisboa em expansão.
Já em 1966, o Capitólio voltou a ganhar nova vida pelas mãos do célebre empresário teatral Vasco Morgado. Com uma visão moderna e pragmática, este decidiu remover os camarotes, o que permitiu aumentar a plateia e o balcão, melhorar a acústica e oferecer maior conforto aos espectadores. Esta intervenção consolidou o Capitólio como uma das salas mais versáteis e avançadas da cidade.
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Fachada (Leite, J., 2011)
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Esplanada-terraço (Leite, J., 2011)
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Balcão e camarotes (Leite, J., 2011)
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Planta e
preçário de 1953 (Leite, J., 2011)
Apesar das várias remodelações e da sua importância como espaço cultural e arquitectónico, o Cine-teatro Capitólio não escapou ao desgaste do tempo e às mudanças nos hábitos de consumo cultural. Ao longo das décadas, o brilho que outrora iluminava o Parque Mayer começou a esmorecer.
Este cinema, nos seus últimos anos de actividade, afastou-se da sua vocação original e passou a exibir filmes pornográficos, numa tentativa desesperada de atrair público e manter-se relevante. Mas essa estratégia não foi suficiente para travar o declínio. A sala, que já tinha sido palco de cinema ao ar livre, espectáculos musicais e teatro, viu a sua reputação desvanecer-se. Em agosto de 1990, encerrou definitivamente as portas, vítima da falta de público e da ausência de investimento. O edifício, que em tempos fora símbolo de modernidade e inovação, ficou em silêncio, à espera de uma nova oportunidade para renascer.
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Declínio do Cineteatro Capitólio |
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Declínio do Cineteatro Capitólio |
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Declínio do Cineteatro Capitólio |
Reconhecido pelo seu valor histórico e artístico, foi oficialmente classificado como Imóvel de Interesse Público pelo Decreto n.º 8/83, de 19 de janeiro, e protegido por uma zona especial de salvaguarda, definida pela Portaria n.º 529/96, de 1 de outubro.
Após o seu encerramento em 1990, o edifício não caiu no esquecimento. A sua acústica excepcional atraiu a atenção da Orquestra Metropolitana de Lisboa, que passou a utilizar o palco para ensaios. Houve também quem sonhasse mais alto: surgiu a proposta de transformar o Capitólio num museu dedicado ao cinema, em articulação com a Cinemateca Portuguesa. No entanto, durante anos, o destino do edifício permaneceu incerto, apesar das várias ideias de revitalização que iam surgindo.
No início do século XXI, o Parque Mayer voltou ao centro do debate urbano. Em 2004, o arquitecto Frank Gehry apresentou um projecto ambicioso que previa a demolição do Capitólio para dar lugar a novas estruturas. A proposta gerou polémica e mobilizou cidadãos e especialistas. Em 2006, graças à acção de um grupo de defensores do património, o Capitólio foi incluído na lista dos 100 edifícios históricos mais ameaçados do mundo, elaborada pelo World Monuments Fund, uma decisão que travou a demolição e reforçou a sua importância cultural.
Em 2008, a Câmara Municipal de Lisboa decidiu preservar o edifício como teatro e lançou um concurso público de reabilitação, com o objectivo de recuperar o projecto original do arquitecto Luís Cristino da Silva. A proposta vencedora foi a do atelier do arquitecto Alberto Souza Oliveira, que se destacou por respeitar a identidade modernista do edifício, ao mesmo tempo que o adaptava às exigências contemporâneas: segurança, versatilidade e conforto para os espectadores.
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Maquetas do projecto de reabilitação do Arquitecto Alberto de Souza Oliveira, de 2008 |
Depois de décadas de incerteza e abandono, o Cineteatro Capitólio voltou a brilhar em outubro de 2016, com uma reabertura que devolveu à cidade um dos seus espaços culturais mais emblemáticos. Propriedade da Câmara Municipal de Lisboa, o edifício foi cuidadosamente restaurado e adaptado às exigências contemporâneas, sem perder a sua identidade histórica. A qualidade do projecto foi reconhecida com a atribuição do prestigiado Prémio Valmor de Arquitectura, um selo de excelência que celebra o melhor da arquitectura lisboeta.
Durante cinco anos, a gestão do novo Capitólio esteve a cargo da empresa "Sons em Trânsito", que foi responsável por revitalizar o espaço com uma programação vibrante e diversificada, desde concertos e peças de teatro a eventos culturais e corporativos. O Capitólio voltou a ser um ponto de encontro para quem procura cultura com qualidade e inovação.
A grande força do Capitólio reside na sua versatilidade. A sala principal pode ser configurada para espectáculos em pé ou sentados, e o palco pode ser posicionado ao centro, criando uma experiência imersiva e dinâmica para o público. O terraço, com vista sobre Lisboa, foi também adaptado para receber eventos ao ar livre, especialmente durante os meses de verão, tornando-se num dos espaços mais procurados da cidade para festas, concertos intimistas e sessões de cinema sob as estrelas.
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Novo Cineteatro Capitólio, inaugurado em 2016 |
O Cineteatro Capitólio foi salvaguardado, reabilitado e revitalizado, com o objectivo de se adaptar aos padrões contemporâneos e ganhar novas funcionalidades. A intenção era clara: injectar nova vida económica e social no Parque Mayer, tornando-o novamente num polo cultural vibrante e atrativo para diferentes gerações.
No papel, tudo parecia promissor. A arquitectura foi respeitada, a versatilidade do espaço garantida, e a reabertura em 2016 trouxe esperança de um novo ciclo. No entanto, a realidade revelou-se mais complexa. Apesar da reabilitação exemplar, o Capitólio não conseguiu cumprir plenamente o papel de motor de revitalização do Parque Mayer. A sua programação, embora pontual e de qualidade, tem sido escassa e pouco integrada com os restantes espaços do parque. O público entra, assiste ao espetáculo e sai, sem gerar movimento ou dinamismo na envolvente.
O Parque Mayer, outrora efervescente, continua a viver uma espécie de hibernação cultural. Nem mesmo a instalação da tenda com o Palco Ticketline conseguiu inverter essa tendência. E o Teatro Variedades, atualmente reabilitado e em funcionamento, viu a sua capacidade reduzida drasticamente, de cerca de 1000 lugares para pouco mais de 300, o que levanta dúvidas sobre o seu impacto futuro.
Hoje, o Teatro Capitólio está sob gestão da EGEAC, entidade municipal responsável por vários equipamentos culturais em Lisboa. O desafio que se coloca é claro: como transformar este espaço emblemático num verdadeiro catalisador de vida urbana e cultural, capaz de devolver ao Parque Mayer o protagonismo que teve no século XX?
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Nova fachada do Cineteatro Capitólio, inaugurado em 2016 |
FONTES:
ACCIAUOLI, M. (2012). Os Cinemas de Lisboa – Um fenómeno urbano do século XX. Editorial Bizâncio. pp. 82-87;
CAETANO, M.J. (2018, fevereiro, 21). Teatro Capitólio com programação regular a partir de sexta-feira. Diário de Notícias. https://www.dn.pt/artes/teatro-capitolio-com-programacao-regular-a-partir-de-sexta-feira-9134645.html/;
CARDOSO, A.F.M. (2014). A
comunicação do projecto à obra : reabilitação do Cineteatro Capitólio.
[Dissertação de Mestrado, Universidade Lusíada de Lisboa]. Repositório das
Universidades Lusíadas. pp. 71-119. http://repositorio.ulusiada.pt/handle/11067/1567;
EGEAC (s.d.). Capitólio. https://egeac.pt/espacos/capitolio/?doing_wp_cron=1707590408.9527080059051513671875;
LEITE, J. (2011, junho, 07). Cine-Teatro Capitólio. Restos de Colecção. https://restosdecoleccao.blogspot.com/2011/06/cine-teatro-capitolio.html;
RIBEIRO,
M.F. (1978). Os Mais Antigos Cinemas de Lisboa, 1896-1939.
IPC/Cinemateca Nacional. pp. 147-148;
SALGUEIRO, T. B. (1985). Dos animatógrafos ao cinebolso. 89 anos de cinema em Lisboa. Finisterra, 20 (40). pp. 379-397. https://revistas.rcaap.pt/finisterra/article/view/2062;
SIPA (2011, julho, 27). Teatro
Capitólio. http://www.monumentos.gov.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=3129.
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