7.4.24

Capitólio: um gigante salvaguardado

  Hoje, a paragem é em Lisboa, mais precisamente no icónico Parque Mayer, situado junto à elegante Avenida da Liberdade. Este espaço, que pulsa com memórias de teatro, música e cinema, é um verdadeiro símbolo da vida cultural lisboeta do século XX.

  Entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, Lisboa viveu uma expansão notável. A cidade modernizou-se, cresceu em população (impulsionada por migrações internas) e viu nascer novos bairros na periferia, que começaram a descentralizar a oferta cultural, antes concentrada em zonas nobres como o Chiado, o Rossio e a própria Avenida da Liberdade.

  Foi neste contexto de transformação que surgiu o Cine-teatro Capitólio, uma obra ousada e inovadora que rompeu com os estilos clássicos da época, abraçando a estética modernista. A sua localização no Parque Mayer (inaugurado em 1922 como espaço dedicado às variedades) foi estratégica: já existiam ali dois teatros populares, o Maria Vitória e o Variedades, mas faltava uma sala de cinema que completasse a oferta de entretenimento para os lisboetas.

A resposta veio com a inauguração do Capitólio, promovida pela Sociedade Avenida Parque, Lda., formada por figuras influentes da época. Esta sociedade adquiriu o terreno aos herdeiros do milionário Adolfo Lima Mayer, e construiu o edifício no local onde antes existira a Esplanada Egípcia, um espaço de lazer que deu lugar a um novo polo cultural multifuncional, dedicado ao teatro, cinema e música.

Planta do alçado principal do Cineteatro Capitólio – 1925/1929

(Leite, J., 2011)

Planta do alçado lateral do Cineteatro Capitólio – 1925/1929

(Leite, J., 2011)

Fases de construção do Cineteatro Capitólio – 1925/1929

(Leite, J., 2011)

Fases de construção do Cineteatro Capitólio – 1925/1929

(Leite, J., 2011)

 O arquitecto Luís Cristino da Silva, considerado um dos pioneiros do Modernismo na arquitectura portuguesa do Século XX, projectou este edificio entre 1925 e 1929, em estreita colaboração com o Engenheiro José Belard da Fonseca (responsável pela inovadora estrutura de vidro e betão na fachada principal). 


Arquitecto Luís Cristino da Silva (Cardoso, A. 2014) 


Engenheiro José Belard da Fonseca (Google)

Inaugurado em julho de 1931, este edificio não foi só mais uma sala de espectáculos em Lisboa, foi uma verdadeira revolução arquitectónica e tecnológica no coração do Parque Mayer. Num tempo em que a cidade se modernizava a passos largos, este edifício destacou-se pelas suas inovações arrojadas e pela estética vanguardista que o tornaram num ícone da capital.

Uma das grandes novidades era a escada rolante (algo raríssimo na época) que levava os visitantes até um terraço panorâmico com 11 metros de altura, ideal para acolher espectáculos ao ar livre e oferecer uma vista privilegiada sobre Lisboa. Este elemento não só reforçava o carácter moderno do edifício, como também o tornava num espaço multifuncional e dinâmico.

Mas as surpresas não ficavam por aí. O Capitólio foi equipado com um dos melhores sistemas de som do mundo, da prestigiada marca Bauer, elevando a experiência cinematográfica a um novo patamar. E a sua arquitectura não deixava ninguém indiferente: o enorme salão podia abrir-se para o exterior através de portas de vidro em faixas horizontais, criando uma ligação fluida entre o interior e o espaço público. A fachada original, marcada por linhas verticais e horizontais, era dominada por um painel de vidro iluminado que se erguia como um verdadeiro farol urbano, captando a atenção de quem passava pela Avenida da Liberdade. Era uma afirmação de modernidade, de cultura e de inovação... tudo num só edifício.



Esplanada- terraço (Leite, J., 2011)




Entrada principal (Leite, J., 2011)


Sala de espectáculos (Leite, J., 2011)


Sala de espectáculos  (Leite, J., 2011)


Sala de espectáculos (Leite, J., 2011)

  Este espaço, já inovador desde a sua inauguração em 1931, não parou de se reinventar ao longo das décadas. Em 1933, apenas dois anos após abrir portas, sofreu a sua primeira grande remodelação: as elegantes portas envidraçadas foram entaipadas e surgiu uma novidade que encantou os lisboetas... uma cabine cinematográfica instalada no terraço-esplanada, permitindo a realização de sessões de cinema ao ar livre, algo absolutamente pioneiro para a época.

 Dois anos depois, em 1935, a sala de espectáculos foi novamente transformada. Um segundo pavimento foi introduzido, com balcão e camarotes, aumentando significativamente a capacidade do espaço para 1.400 lugares. Esta ampliação refletia não só o sucesso do Capitólio, mas também a crescente procura por cultura e entretenimento na Lisboa em expansão.

  Já em 1966, o Capitólio voltou a ganhar nova vida pelas mãos do célebre empresário teatral Vasco Morgado. Com uma visão moderna e pragmática, este decidiu remover os camarotes, o que permitiu aumentar a plateia e o balcão, melhorar a acústica e oferecer maior conforto aos espectadores. Esta intervenção consolidou o Capitólio como uma das salas mais versáteis e avançadas da cidade.

Fachada  (Leite, J., 2011)

Esplanada-terraço (Leite, J., 2011)

Balcão e camarotes (Leite, J., 2011)

Planta e preçário de 1953 (Leite, J., 2011)


Apesar das várias remodelações e da sua importância como espaço cultural e arquitectónico, o Cine-teatro Capitólio não escapou ao desgaste do tempo e às mudanças nos hábitos de consumo cultural. Ao longo das décadas, o brilho que outrora iluminava o Parque Mayer começou a esmorecer.

Este cinema, nos seus últimos anos de actividade, afastou-se da sua vocação original e passou a exibir filmes pornográficos, numa tentativa desesperada de atrair público e manter-se relevante. Mas essa estratégia não foi suficiente para travar o declínio. A sala, que já tinha sido palco de cinema ao ar livre, espectáculos musicais e teatro, viu a sua reputação desvanecer-se. Em agosto de 1990encerrou definitivamente as portas, vítima da falta de público e da ausência de investimento. O edifício, que em tempos fora símbolo de modernidade e inovação, ficou em silêncio,  à espera de uma nova oportunidade para renascer.


Declínio do Cineteatro Capitólio 


Declínio do Cineteatro Capitólio 


Declínio do Cineteatro Capitólio 

Reconhecido pelo seu valor histórico e artístico, foi oficialmente classificado como Imóvel de Interesse Público pelo Decreto n.º 8/83, de 19 de janeiro, e protegido por uma zona especial de salvaguarda, definida pela Portaria n.º 529/96, de 1 de outubro.

Após o seu encerramento em 1990, o edifício não caiu no esquecimento. A sua acústica excepcional atraiu a atenção da Orquestra Metropolitana de Lisboa, que passou a utilizar o palco para ensaios. Houve também quem sonhasse mais alto: surgiu a proposta de transformar o Capitólio num museu dedicado ao cinema, em articulação com a Cinemateca Portuguesa. No entanto, durante anos, o destino do edifício permaneceu incerto, apesar das várias ideias de revitalização que iam surgindo.

No início do século XXI, o Parque Mayer voltou ao centro do debate urbano. Em 2004, o arquitecto Frank Gehry apresentou um projecto ambicioso que previa a demolição do Capitólio para dar lugar a novas estruturas. A proposta gerou polémica e mobilizou cidadãos e especialistas. Em 2006, graças à acção de um grupo de defensores do património, o Capitólio foi incluído na lista dos 100 edifícios históricos mais ameaçados do mundo, elaborada pelo World Monuments Fund, uma decisão que travou a demolição e reforçou a sua importância cultural.

Em 2008, a Câmara Municipal de Lisboa decidiu preservar o edifício como teatro e lançou um concurso público de reabilitação, com o objectivo de recuperar o projecto original do arquitecto Luís Cristino da Silva. A proposta vencedora foi a do atelier do arquitecto Alberto Souza Oliveira, que se destacou por respeitar a identidade modernista do edifício, ao mesmo tempo que o adaptava às exigências contemporâneas: segurança, versatilidade e conforto para os espectadores.



Maquetas do projecto de reabilitação do Arquitecto Alberto de Souza Oliveira, de 2008 

  Depois de décadas de incerteza e abandono, o Cineteatro Capitólio voltou a brilhar em outubro de 2016, com uma reabertura que devolveu à cidade um dos seus espaços culturais mais emblemáticos. Propriedade da Câmara Municipal de Lisboa, o edifício foi cuidadosamente restaurado e adaptado às exigências contemporâneas, sem perder a sua identidade histórica. A qualidade do projecto foi reconhecida com a atribuição do prestigiado Prémio Valmor de Arquitectura, um selo de excelência que celebra o melhor da arquitectura lisboeta.

  Durante cinco anos, a gestão do novo Capitólio esteve a cargo da empresa "Sons em Trânsito", que foi responsável por revitalizar o espaço com uma programação vibrante e diversificada, desde concertos e peças de teatro a eventos culturais e corporativos. O Capitólio voltou a ser um ponto de encontro para quem procura cultura com qualidade e inovação.

  A grande força do Capitólio reside na sua versatilidade. A sala principal pode ser configurada para espectáculos em pé ou sentados, e o palco pode ser posicionado ao centro, criando uma experiência imersiva e dinâmica para o público. O terraço, com vista sobre Lisboa, foi também adaptado para receber eventos ao ar livre, especialmente durante os meses de verão, tornando-se num dos espaços mais procurados da cidade para festas, concertos intimistas e sessões de cinema sob as estrelas.



Novo Cineteatro Capitólio, inaugurado em 2016 

O Cineteatro Capitólio foi salvaguardado, reabilitado e revitalizado, com o objectivo de se adaptar aos padrões contemporâneos e ganhar novas funcionalidades. A intenção era clara: injectar nova vida económica e social no Parque Mayer, tornando-o novamente num polo cultural vibrante e atrativo para diferentes gerações.

No papel, tudo parecia promissor. A arquitectura foi respeitada, a versatilidade do espaço garantida, e a reabertura em 2016 trouxe esperança de um novo ciclo. No entanto, a realidade revelou-se mais complexa. Apesar da reabilitação exemplar, o Capitólio não conseguiu cumprir plenamente o papel de motor de revitalização do Parque Mayer. A sua programação, embora pontual e de qualidade, tem sido escassa e pouco integrada com os restantes espaços do parque. O público entra, assiste ao espetáculo e sai, sem gerar movimento ou dinamismo na envolvente.

O Parque Mayer, outrora efervescente, continua a viver uma espécie de hibernação cultural. Nem mesmo a instalação da tenda com o Palco Ticketline conseguiu inverter essa tendência. E o Teatro Variedades, atualmente reabilitado e em funcionamento, viu a sua capacidade reduzida drasticamente, de cerca de 1000 lugares para pouco mais de 300, o que levanta dúvidas sobre o seu impacto futuro.

Hoje, o Teatro Capitólio está sob gestão da EGEAC, entidade municipal responsável por vários equipamentos culturais em Lisboa. O desafio que se coloca é claro: como transformar este espaço emblemático num verdadeiro catalisador de vida urbana e cultural, capaz de devolver ao Parque Mayer o protagonismo que teve no século XX?


Nova fachada do Cineteatro Capitólio, inaugurado em 2016 
 

FONTES:

ACCIAUOLI, M. (2012). Os Cinemas de Lisboa – Um fenómeno urbano do século XX. Editorial Bizâncio. pp. 82-87;

CAETANO, M.J. (2018, fevereiro, 21). Teatro Capitólio com programação regular a partir de sexta-feira. Diário de Notícias. https://www.dn.pt/artes/teatro-capitolio-com-programacao-regular-a-partir-de-sexta-feira-9134645.html/;

CARDOSO, A.F.M. (2014). A comunicação do projecto à obra : reabilitação do Cineteatro Capitólio. [Dissertação de Mestrado, Universidade Lusíada de Lisboa]. Repositório das Universidades Lusíadas. pp. 71-119. http://repositorio.ulusiada.pt/handle/11067/1567;

EGEAC (s.d.). Capitólio. https://egeac.pt/espacos/capitolio/?doing_wp_cron=1707590408.9527080059051513671875;

LEITE, J. (2011, junho, 07). Cine-Teatro Capitólio. Restos de Colecção. https://restosdecoleccao.blogspot.com/2011/06/cine-teatro-capitolio.html;

RIBEIRO, M.F. (1978). Os Mais Antigos Cinemas de Lisboa, 1896-1939. IPC/Cinemateca Nacional. pp. 147-148;

SALGUEIRO, T. B. (1985). Dos animatógrafos ao cinebolso. 89 anos de cinema em Lisboa. Finisterra20 (40). pp. 379-397. https://revistas.rcaap.pt/finisterra/article/view/2062;

SIPA (2011, julho, 27). Teatro Capitólio. http://www.monumentos.gov.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=3129.


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