"Aqui há alguns anos existia uma rúbrica no Cartaz do jornal Expresso que eu tinha o hábito de ler todas as semanas, por achar curiosa embora terrivelmente frustrante: chamava-se “as sessões contínuas”, onde se teciam comentários às salas de exibição a que hoje em dia temos direito.
Porquê frustrante? Pela simples razão de, por mais voltas que se dêem, por mais salas que se frequentem, o resultado é quase sempre o mesmo.
Tirando a melhor ou pior qualidade de projecção, mais pipoca ou menos pipoca, a ida a uma sessão de cinema nos tempos actuais tem sempre o sabor da massificação, do colectivo no mau sentido.
E a maior parte das vezes dá-nos a sensação de entrarmos para quartos (vá lá, suites...) de um qualquer hotel de boa categoria, com óptimos corredores alcatifados. Existe conforto, sim senhor, mas a magia, o espectáculo, são coisas ausentes, que se perderam algures no tempo.
E, no entanto, ainda me lembro do prazer que era ir ao cinema, independentemente da qualidade do filme a que se ia assistir.
Lisboa, no início da década de 70, não chegava a ter vinte salas de estreia - numa pequena viagem da Baixa para as Avenidas Novas, era o Condes e o Eden, o Tivoli e o S. Jorge, o Castil, o Mundial, o Monumental com o seu Satélite, o Apolo 70 e o Berna, o Império e o seu Estúdio, o Roxy, o Londres, Roma, Vox e Alvalade, o Estúdio 444 e o Caleidoscópio (algumas outras salas, como o Quarteto ou o Nimas, chegaram já um pouco mais tarde, depois de Abril de 74).
Nem uma destas salas resistiu à passagem dos anos, embora continuem vivas nas nossas memórias. E eram todas salas de espectáculo (não apenas de exibição, como hoje), grandes e espaçosas, as mais antigas com a sua plateia e o seu balcão (12$50 e 25$00, lembram-se?).
Ah, e um pormenor de grande importância: a maioria tinha cortinados, longos e espessos, que, imagine-se, abriam-se e fechavam-se, majestosamente, no início e no fim da cerimónia (lembram-se do filme do Coppola, "One From The Heart / Do Fundo do Coração"? Pois, era isso mesmo, a magia...).
Curiosamente, as salas tinham a sua própria programação, o mesmo filme não se estreava em mais de um local ao mesmo tempo; e isso tinha uma certa importância, conferia a cada sala a sua personalidade, a sua identidade.
E quanto à sessão, propriamente dita, as diferenças revelavam-se mesmo antes de se entrar para a sala escura: normalmente havia bichas maiores do que as de hoje (videos e dvds eram palavras desconhecidas, pelo que as pessoas eram obrigadas a sair de casa) mas no fim da espera era reconfortante poder-se falar, directamente e em tom normal, com a pessoa que vendia os bilhetes (e não aos berros e para um pedaço de vidro, como hoje acontece).
Depois era a recolha do programa grátis (que sempre servia de pretexto para se dar qualquer coisa ao arrumador) com os dados mais ou menos completos do filme em cartaz e às vezes também com comentários críticos (lembram-se do bom trabalho que o Lauro António fazia no Apolo 70?).
Finalmente o início da sessão, que quase sempre começava por um magazine de actualidades ("Assim vai o mundo..."), um desenho animado e/ou um documentário e as apresentações das próximas estreias.
Primeiro intervalo (algumas salas foram-no abolindo), antes do início do filme de fundo e, antes da segunda parte, um novo intervalo. Estes interregnos serviam, acredite-se, para visitar o bar, tecer comentários sobre o filme, ir à casa de banho...
Para concluir, uma última referência a outra vertente das sessões: sala que se prezasse tinha sempre as suas sessões clássicas (normalmente ao fim da tarde ou à meia-noite) onde, por preços mais reduzidos, se podiam visualizar outros filmes, velhas glórias do passado, de que habitualmente só se tinha ouvido falar ou lido em revistas e livros de cinema.
Ah, e no Verão havia mesmo férias para as estreias - era a época das reposições, que servia de igual modo para preencher lacunas antigas.Enfim, outros tempos, outras sessões contínuas..."
Texto e imagem retirado do blogue "Ié, Ié" da autoria de Rato...uma excelente viagem ao passado.
3 comments:
Não me lembro de muitas dessas coisas, visto ter nascido em 77 mas, uma coisa é certa: hoje em dia, ir ao cinema não tem metade da piada que deveria ter.
Primeiro, porque durante pelo menos 15 ou 20 minutos, estamos a levar com pázadas de publicidade (repetida até à exaustão)e segundo, porque certas pessoas não sabem comportar-se e vão para o cinema atender telemóveis, falar sobre coisas que não interessam a ninguém... E ainda ficam amuados, se os chamam à atenção!
E assim, a pouco e pouco, vamos perdendo muitos rituais mágicos...
:)
Bjs!
saudade de tempos que nao vivi..
Olá viva,
gostaria de louvar o seu trabalho em trazer essas recordações dos cinemas de outros tempos.
Gostaria de de dar um destaque especial ao Monumental, pois apesar de nunca o ter conhecido, segundo as minhas pesquisas foi o maior atentado à cultura portuguesa que se fez até hoje, a sua demolição. Porquê? Pergunto-me muitas vezes quando pego no dossier deste cinema e teatro, local mitico onde passaram inúmeras figuras do nosso espectáculo e onde passaram os mais belos filmes feitos para o cinema.
Viva o Monumental, condene-se quem o assassinou.
Paulo Ferreira
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