Há cidades que parecem guardar memórias em cada esquina, e Portalegre é uma delas. Se hoje fala-se de multiplexes e pipocas XL, houve uma época em que a magia do cinema se vivia em teatros oitocentistas, cine-parques ao ar livre e cine-teatros modernistas. Inspirado pelo desafio lançado por Frederico Corado no grupo Cinemas do Paraíso, e recordando o olhar apaixonado de Lauro António, viajamos por três palcos míticos da cidade: o Teatro Portalegrense, o Cine Parque Caroço e o Cine-Teatro Crisfal.
Inicio com o Teatro Portalegrense, que se situa no Largo Visconde de Cidrais, Travessa do Erguido em pleno centro da cidade. Inaugurado a 20 de junho de 1858, este teatro começou em grande estilo: a primeira peça foi o drama Alfageme de Santarém, de Almeida Garrett. Projetado por José de Sousa Larcher e inspirado no Teatro Ginásio de Lisboa, foi o primeiro teatro de Portalegre e é hoje o sexto mais antigo ainda de pé em Portugal.
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Fachada do Teatro Portalegrense (©️ SIPA) |
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Fachada do Teatro Portalegrense (©️ SIPA) |
Arquitectónicamente, este edificio foi inspirado no Teatro Ginásio de Lisboa, na sua versão oitocentista. E como tal funcionou, nessa época onde os Teatros da Província serviam para exibição dos espectáculos de Lisboa em tourné nacional e de suporte a grupos e companhias locais. Foi o primeiro edificio a ser contruido para teatro em Portalegre, sendo o sexto teatro mais antigo do País ainda subsistente em Portugal.
Em 1906, assistiu-se à introdução do cinematógtafo neste teatro, com a organização de 3 sessões. Em 1908, e após diversas beneficiações, este teatro dispunha de um auditório que acomodava o público em 5 frisas, 15 camarotes de 1ª ordem, 15 de 2ª ordem, 45 fauteils, 48 lugares superiores, 84 de geral e 2 galerias. Em 1910, foram feitas beneficiações nas áreas da circulação (vestibulo, portas e escadas da plateia) e de apoio ao publico (bilheteira e restaurante).
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Interior do Teatro Portalegrense (©️ Publico, 2019) |
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Interior do Teatro Portalegrense (©️ Tribuna Alentejo, 2022) |
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Interior do Teatro Portalegrense (©️ NIT, 2019) |
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Interior do Teatro Portalegrense (©️ Sábado, 2019) |
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Interior do Teatro Portalegrense (©️ Sábado, 2019) |
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Interior do Teatro Portalegrense (©️ Sábado, 2019) |
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Interior do Teatro Portalegrense (©️ Sábado, 2019) |
No final da década de 1920, assiste-se a uma decadência progressiva deste teatro, que ficou à margem da dinamização cultural e recreativa, que se desenvolveu em Portalegre, através e outros espaços e circuitos de produção. É por esta altura que, neste teatro, começa a exibir-se filmes, sem que por isso se dispusessem de equipamentos adequados e concebidos de acordo com os novos modelos construtivos e arquitectónicos. É neste contexto que surge a ideia da construção de uma nova sala de espectáculos.
Na década de 1940, é considerado como um espaço incapaz para local de espectáculo pela Inspecção-Geral dos Espectáculos, que autoriza o seu funcionamento condicionado, acentuando a degradação da sua estrutura.
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Anúncio de Revista Vaudeville "O Pé Descalço" de 1941 (©️ Museu do Fado) |
Segundo Lauro António, era um teatro antigo (algo arruinado), influenciado pelo estilo italiano, na vertical, composto por plateia, frisas e camarotes. Existiam normalmente 4 sessões semanais (3ª, 5ª feiras, sábado e domingo) e, ocasionalmente, teatro. Por ali passaram companhias de revista e grandes nomes da cena nacional. O próprio Lauro António lembrava o edifício como um teatro “à italiana”, vertical e aristocrático, ainda que já meio arruinado. E há quem nunca esqueça: em 1985, foi aqui que a mítica Amélia Rey Colaço subiu ao palco pela última vez, com El-Rei Sebastião, de José Régio.
Mas nem só de glória viveu este teatro. Na década de 1980, o interior foi transformado em… ringue de patinagem, imagine-se, com camarotes a assistir a piruetas em vez de dramas! Mais tarde, foi sede de clube desportivo e até da IURD. Hoje está classificado como Monumento de Interesse Municipal, mas desde 2013 procura comprador (em 2019, até estava no OLX por 350 mil euros).
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Em 1932, a escritura de compra e venda do Teatro Portalegrense realizada pela sociedade proprietária ao empresário Jorge Frederico Vellez Caroço, estipulava que não poderia ser dado outro uso a este imóvel, sem que previamente se edificasse uma nova casa de espectáculos em Portalegre. Convém salientar que Vellez Caroço (um antigo oficial do Exército, deputado e senador da I República) geria na época todas as casas de espectáculo da cidade, nomeadamente o Cine Parque Caroço, uma estrutura instalada na cerca da antiga "Fábrica Real" (actualmente, Câmara Municipal), junto ao Jardim da Corredoura, inaugurada em Agosto de 1930.
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Local do antigo Cine Parque (©️ Portalegre Abandonada, 2016) |
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Local do antigo Cine Parque (©️ Portalegre Abandonada, 2016) |
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Local do antigo Cine Parque (©️ Portalegre Abandonada, 2016) |
Segundo Lauro António, este cinema era a versão alentejana do “drive-in”, mas sem carros. Nas noites quentes, Portalegre reunia-se numa esplanada ao ar livre para ver filmes sob as estrelas.
O ambiente era irresistível: cadeiras dispostas em classes (de “Reservados” a “Geral”, com preços entre 1$50 e 5$00), refrigerantes no bar para combater o calor, rebuçados e amendoins comprados à entrada… e a possibilidade sempre real de levar com uma chuvada de verão em plena sessão. Havia casa cheia quatros vezes por semana (3ª e 5ª feiras, Sábado e Domingo). Actualmente, o espaço encontra-se ao abandono.
Era a prova de que, no Alentejo profundo, também se podia viver o glamour cinematográfico, ainda que com a meteorologia a desafiar a paciência dos espectadores.
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Segundo Lauro António (2021), o Cine Teatro Crisfal, localizado ao cimo do Jardim da Corredoura, era um edificio típico da década de 1950, inserido na febre dos Cine-teatros existentes no país, em réplicas inspiradas no Cine-teatro Monumental em Lisboa.
Lauro António, então adolescente, assistiu à sua inaguração a 29 de setembro de 1956, com uma actuação da companhia Amélia Rey Colaço-RoblesMonteiro, que, para assinalar o facto, permaneceu neste espaço durante uma pequena temporada, com duas ou três peças do seu repertório.
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Placa de inauguração de 29-09-1956 (©️ Discoteca Crisfal, 2006) |
Este edificio foi obra de iniciativa privada, construído por um conhecido industrial de Santo António das Areias. A designação "Crisfal", advém da obra poética de Cristóvão Falcão, poeta nascido em Portalegre, ao que se supõe, entre 1515 e 1518, no seio de uma família nobre. Foi uma personagem curiosa, aventureira e talentosa, tendo sido educado no Paço, desde novo, onde aprendeu Belas Artes e casou com uma menor sem consentimento dos familiares, o que o levou á prisão durante 5 anos no Castelode São Jorge, em Lisboa. Ao sair, procurou pela amada que se encontrava no Mosteiro do Lorvão e iniciou a sua éscrita da écloga "Crisfal", que retrata a paixão arrebatadora por essa mulher. Em 1542, o Rei D. João III, para evitar escândalos, envia Cristóvão para Roma como seua gente particular. Regressado ao reino, é despachado em 1545 como capitão da fortaleza de Arguim em África. Novamente no continente, volta a ser preso em 1547, por agressão a um fidalgo. Em 1551, é perdoado, casando 2 anos depois com Isabel Caldeira, perdendo-se o seu destino a partir daí, tal como acontece com o herói no final da écloga "Crisfal", cujo nome tudo indica que seja criptónimo de Cristóvão Falcão. Esta obra foi publicada entre 1543 e 1546, numa folha volante e, mais tarde, em volume.
O Cine-teatro Crisfal, projectado pelo Arqt.º Domingos Alves Dias, em colaboração com o Eng.º Raul Dias Subtilé um edificio de 2 andares, que apresenta uma arquitectura modernista, cultural e recreativa, com linhas rectas, volumes articulados, decoração despojada, com relevo e pinturas monumentais na fachada e paredes. A sua sala de espectáculos é composta por plateia, frisa, 1º e 2º balcões, placo, teia e cávea. A plateia divide-se em pares e ímpares, com 22 filas com 12 lugares cada. Contem frisas ao fundo, quatro de cada lado da entrada. O 1º balcão é suportado por 8 colunas lisas e estreitas, dividido em pares ímpares, com 10 filas com 12 cadeiras cada. O 2º balcão com cinco filas de cadeiras. O palco contém uma cávea por baixo, boca de cena com moldura azul e dourada, écran de projecção na parede, ao fundo, e teia com varandim, com 3 janelas para o exterior, junto ao tecto.
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Plantas do Piso 0 e 1 do Cine-teatro Crisfal (©️ Frederico Corado) |
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Imagens exteriores e interiores do Cine-Teatro Crisfal (©️ SIPA, 2001) |
Mas o Crisfal não era só fachada: ao longo da década de 1980 acolheu o Festival Internacional de Cinema de Portalegre, dirigido por Lauro António. E aqui fica uma nota divertida: o aquecimento central era tão arcaico que, nas sessões de inverno, os portalegrenses levavam cobertores de casa para aguentar o frio, para além das cadeiras pouco confortáveis, em mau estado de conservação. Verdadeiro cinema “à portuguesa”!
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Imagens exteriores e interiores do Cine-teatro Crisfal em 1989 (©️ Frederico Corado) |
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Cartazes do Festival Internacional de Cinema Portalegre (1988-1990 ©️ Frederico Corado) |
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Programa do 2º Festival Internacional de Cinema Portalegre - 1989 (©️ Frederico Corado) |
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Imagens cedidas por Frederico Corado |
Em 2007, quando visitou Portalegre, Lauro António cruzou-se com a filha do tal industrial de Santo António das Areias, proprietário do edificio, que lhe explicou o projecto que tinha em mente para manter o edificio activo, com outras funcionalidades, nomeadamente uma discoteca, bar e estúdio por forma a cativar os jovens da região. Esta nova vida durou somente 5 anos.
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Imagens do interior da Discoteca Crisfal (©️ Blogue da Discoteca Crisfal, 2006) |
Com a inauguração do Centro de Artes e Espectáculos a 5 de novembro de 2006, e com a exibição de filmes também no Museu das Tapeçarias, este cine-teatro assinou o seu atestado de morte como sala de espectáculos. Em 2017, este edificio encontrava-se à venda no OLX, tendo sido classificado como Monumento de Interesse Municipal, no Aviso n.º 8595/2022, DR, 2.ª série, n.º 81 de 27 abril 2022. Incluído na Área Protegida da Serra de São Mamede.
Lauro António (2021) recorda como era viver a experiência cinematográfica na década de 1950 em Portalegre. Os cinemas publicitavam as suas sessões nos jornais locais, mas sobretudo numas folhas volantes em A4, de fina textura, quase transparentes, que se distribuiam na sessão anterior e depois pelas mesas dos cafés mais frequentados, sendo impressas na Tipografia Casaca.
Fontes:
ANTÓNIO, Lauro. Masterclasse - Os filmes que eu amo: "A Última Sessão". Em Fórum Luisa Todi, 2021. <https://www.forumluisatodi.pt/wp-content/uploads/2021/10/FolaSala-UltimaSessao.pdf>;
ANTÓNIO, Lauro. Tempo de Liceu em Portalegre. Em blogue "Lauro António apresenta...", 2007. <https://lauroantonioapresenta.blogspot.com/2007/06/tempo-de-liceu-em-portalegre.html>;
CÂMARA MUNICIPAL DE PORTALEGRE. Edificios Modernistas. Actual. <https://www.cm-portalegre.pt/visitantes/turismo/patrimonio-cultural/edificios-modernistas/>;
CARDOSO, Berta. Teatro Portalegre, Revista Vaudeville "O Pé Descalço" 1941. Em Museu do Fado <https://www.museudofado.pt/en/collection/poster/teatro-portalegrense-revista-vaudeville-o-pe-descalco-1941-en>;
CRUZ, Duarte Ivo. Os problemas do velho Teatro Portalegrense. Em e-cultura.pt. <https://www.e-cultura.pt/artigo/23941>;
LARGO DOS CORREIOS. Maria Barroso - Sob o signo de Benilde - seis. Em blogue "Largo dos Correios", 2015. <https://largodoscorreios.wordpress.com/2015/08/12/maria-barroso-sob-o-signo-de-benilde-seis/>;
PORTALEGRE ABANDONADA. Cine Parque. <https://www.facebook.com/100063504799127/posts/538626232979691>;
SIPA. Edificio do Cine-teatro Crisfal. 2001. <http://www.monumentos.gov.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=10749>;
SIPA. Teatro Portalegrense. 2005. <http://www.monumentos.gov.pt/site/app_pagesuser/SIPA.aspx?id=21346>;
TRIBUNA ALENTEJO. Teatro Portalegrense continua à venda e ao abandono. 2022. <https://tribunaalentejo.pt/artigos/teatro-portalegrense-continua-a-venda-e-ao-abandono?fbclid=IwAR1GN-sjkTaan02FIKq5R_zlJ_Vh583inmV-yYWFljCN0OJ5CWnB8bqcGbA_aem_AZu05CqEGF7tg_9CgjaK2RR5uasH3hMnl8B9tB83TQnBoggX7yR4-CH-ahUJ-dDHpacuy5gckl7s3CHorRJUrRRI>;
UMBELINO, Lina. Desculpe, sabe onde fica o centro? Lisboa: Primeiro Capitulo, 2023. <https://books.google.pt/books?id=i_jpEAAAQBAJ&pg=PT35&lpg=PT35&dq=cine+parque+caro%C3%A7o+portalegre&source=bl&ots=ytPIKX_smY&sig=ACfU3U2sQ_0KJbPgXrZaPSQwEd40A0PGzQ&hl=pt-PT&sa=X&ved=2ahUKEwj14bvJgbuFAxUo_AIHHfGzDPs4ChDoAXoECAQQAw#v=onepage&q=cine%20parque%20caro%C3%A7o%20portalegre&f=false>;
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